HELENA RUFINO

Nos anos 40 do século passado um industrial natural da Beira Alta, José Maria Ferreira Delgado, comprou a Fábrica Nacional de Fiação de Lãs, em Vila Franca de Xira. A unidade funcionava no espaço onde existe hoje o supermercado Pingo Doce, no coração da cidade.

A necessidade de aumentar a produção, para dar saída às encomendas, levou o empresário a contratar mulheres para assegurar o funcionamento ininterrupto da fábrica. “O meu pai comprou a fábrica na altura da guerra. Foi das primeiras pessoas a admitir mulheres. Tinham que trabalhar muito porque tinham que vender muito para fora. Tiveram que pôr a fábrica a trabalhar dia e noite. Tinham as mulheres a trabalhar de dia e os homens a trabalhar de noite”, conta a filha única do industrial, Maria Helena Rufino, 82 anos, que aos 14 deixou a Beira para rumar a sul com a família. Para acolher os filhos das mulheres trabalhadoras, José Maria Ferreira Delgado criou um infantário – um dos primeiros em Portugal – com a ajuda do padre Vasco Moniz, o ‘pai’ do obra do Casi (Centro de Assistência Social e Infantil) que o industrial apoiou financeiramente.

“Esta iniciativa trouxe-lhe muitas arrelias. Os outros empresários, que não tinham creches, sentiram-se na obrigação de as criarem e perseguiram-no muito por isso”, recorda. Nessa altura já o industrial, empreendendo numa medida impopular, tinha imposto o descanso ao domingo, como vereador da câmara, hábito que não existia em Vila Franca de Xira. “O domingo era o dia santo em todo o país e ali ainda não tinha chegado. O padre Moniz quando lá chegou não tinha ninguém na missa”. Maria Helena Rufino, quase a terminar o liceu, ia ajudar para a creche com a mãe, que ficava do outro lado da rua. “Tinham lá pessoas para trabalhar com as crianças, mas nós íamos lá ajudar. Porque gostávamos mas também porque também era preciso ajudar”, conta Maria Helena sobre uma terra de gente pobre e meninos, descalços, a pedir esmola.

“Mudava-mos as fraldas, tratávamos das crianças, dávamos-lhe banho. Às vezes ia eu de manhã e a minha mãe de tarde. Revezámo-nos. A creche tinha lavadeiras. Era tudo de pano”. Primeiro chegaram os filhos das trabalhadoras da empresa. Depois vieram outros. Até que se alargou a casa e a obra do Centro de Assistência Social e Infantil.José Maria Ferreira Delgado construiu o Bairro da Fiação Nacional de Lãs para facilitar o acesso a uma casa a alguns trabalhadores e uma sede para os operários confraternizarem nas horas vagas. Chamavam-lhe a sede da fiação. “O meu pai contactava muito com os operários. E muitas das vezes, à noite, ia para lá conversar e jogar com eles. Todos gostavam muitíssimo dele”. Os trabalhadores da fiação não participaram na greve que levou muitos trabalhadores à Praça de Toiros de Vila Franca de Xira nos tempos agrestes da ditadura. José Maria Ferreira Delgado colocou-se à porta da fábrica para que ninguém passasse. Sabia o que os esperava. “Os operários obedeceram-lhe. Os grevistas foram metidos na Praça de Toiros.

Bateram-lhes. Fizeram barbaridades”, lembra Maria Helena.José Maria Ferreira Delgado chegou a ser proprietário do mouchão do Lombo do Tejo, onde desenvolveu agricultura (ver texto na página ao lado). Abriu lojas e armazéns na cidade. Durante duas décadas foi o maior empregador da região, com quase 400 operários só na fábrica de Vila Franca de Xira. Chegou a ter ainda uma fábrica de malhas em Lisboa e outra de tecelagem na Covilhã. No prédio que hoje acolhe o partido comunista, onde veio a morar mais tarde a família, funcionou no rés-do-chão uma loja do empresário: a Loja do Ribatejo. Era ainda proprietário de um restaurante em Alcântara. Vila Franca de Xira prestou-lhe homenagem com a atribuição do seu nome a uma rua. Um comunista, Daniel Branco, quis assinalar o trabalho do industrial em Vila Franca de Xira, mesmo estando a sua figura ligada ao Estado Novo.

A cerimónia de inauguração da placa foi feita com pompa e circunstância. Três bandas saíram à rua. E algumas anciãs, antigas operárias da fiação, quiseram abraçar a única filha e conhecer os quatro netos do industrial que criou um infantário para que as mulheres pudessem trabalhar.Na aldeia de Sobreda, Seixo da Beira, concelho de Oliveira do Hospital, onde nasceu, a rua também tem o seu nome. Para lembrar camisolas de lã levadas aos mais desfavorecidos por um filho da terra. Mas o povo de Vila Franca de Xira, terra de trabalhadores que o industrial respeitou, prestou-lhe este tributo de forma única.Um filho emprestado de Vila Franca de Xira, José Maria Ferreira Delgado nasceu em Sobreda, freguesia de Seixo da Beira, concelho de Oliveira do Hospital a 11 de Janeiro de 1882 na casa grande e amarela que existe em frente à capela na rua com o seu nome. “Grande amigo da sua terra Natal (...) patrocinou a instalação da luz eléctrica desta povoação cuja inauguração se fez a 8 de Abril de 1961”, lê-se numa placa de mármore colocada no edifício. Foi combatente na primeira grande guerra [1914-18]. Voltou são e salvo e recebeu a Cruz de Guerra. Singrou como industrial, sobretudo em Vila Franca de Xira, para onde foi viver nos anos 40 do século passado depois de adquirir a Fiação Nacional de Lãs. Comprou o mouchão Lombo do Tejo para desenvolver a actividade agrícola, abriu lojas de comércio e durante duas décadas foi um dos maiores empregadores da região. Faleceu a 17 de Fevereiro de 1968. Vila Franca de Xira prestou-lhe homenagem póstuma com a atribuição do seu nome a uma rua. O homem que ‘murou’ o Lombo do Tejo e a perseguição de Salazar.

Depois do “furacão” de 1941 em Portugal - que foi notícia nas páginas dos jornais internacionais - o mouchão do Lombo do Tejo, no concelho de Vila Franca de Xira, ficou inundado. A proprietária não conseguiu suportar o peso das despesas e o banco colocou a propriedade à venda. O industrial José Maria Ferreira Delgado aproveitou a oportunidade de negócio com um outro sócio, proprietário da Penteação de Alhandra. Depois da tempestade a terra da ilha ficou salgada. “Estiveram dois anos a dessalgar a ilha”, recorda a filha do industrial Maria Helena Rufino. “Por causa disso até passou a haver um imposto nos fósforos para garantir apoio social”, recorda o marido, Fernão Rufino, de mãos a apoiar o queixo, sentado na secretária do escritório da família, na Beira.José Maria Ferreira Delgado chamou engenheiros. Mandou construir estruturas em madeira. Queria impedir a água de entrar, mas todos os anos a ilha inundava. Gastou 800 contos para “fechar a boca” do mouchão. Sem sucesso. A estrutura foi abaixo e levou o investimento. “Foi quando o meu pai disse: ‘não gasto mais nada. Sou eu que vou tapar isto”. As fotos de barcos carregados de pedra ilustram o trabalho que se seguiu. O industrial decidiu descarregar pedra para criar uma protecção ao redor da ilha. Contratou todos os barcos de carga da zona e ainda deu emprego a mais gente. Foram precisos quase dois anos para resolver o problema. Até que um dia a pedra chegou ao cimo da água. “A água tem uma força enorme e deitou a madeira abaixo. Com a pedra era diferente. A água entrava e saía”, explica Maria Helena.O dia em que se ‘fechou’ o mouchão do Lombo do Tejo coincidiu com o aniversário do industrial. A família assistiu ao finalizar da obra da traineira que tinham para chegar à ilha. A partir daí fez-se um grande valado em pedra. ‘Murou-se’ o Lombo do Tejo. Chamaram-lhe os valados. Cinco metros de profundidade à volta do mouchão.

Nas valas criaram-se ostras para vender para França. E na lagoa criada dentro do mouchão sobreviviam peixes. No mouchão, onde desenvolveu agricultura (trigo e aveia), José Maria Ferreira Delgado recebeu ministros. Na mesma ilha existiam casas de habitação para o abegão e para os trabalhadores - os gaibéus - que vinham do Norte trabalhar na lezíria na altura das colheitas. Em 1963/64 problemas económicos causados por perseguição política de Salazar, segundo a filha, levaram-no a vender a ilha. “O meu pai criou, com outros sócios, um jornal chamado ‘Diário Popular”. Dantes não se fazia um jornal de qualquer maneira. Era preciso autorização do Salazar. Salazar disse-lhe que ‘Diário Popular’ não era. Teria que pôr outro nome ao jornal. O meu pai disse-lhe que ele é que estava a criar o jornal e que ia ficar e com uma tarjeta vermelha. Naquela altura vermelho era logo comunismo. O Salazar, que era até amigo do meu pai, ficou furioso”.A perseguição política implicou o corte do crédito bancário de que necessitava para os negócios e que até ali era ilimitado. A falência da fábrica de Vila Franca foi evitada e o industrial conseguiu vendê-la a um empresário que mais tarde fugiu para o Brasil. José Maria Ferreira Delgado tinha uma postura diferente, enfatiza a filha.

“Podia não haver dinheiro para mais nada, mas para pagar aos operários tinha que haver sempre. Vendia umas coisas e vendia outras para conseguir pagar. Sobretudo terras”. Mesmo em altura de dificuldades doou o edifício, onde hoje funciona a residencial Flora, à obra do padre Moniz, tal como tinha prometido, para que o Casi pudesse subsistir. “Quando fez isto já precisava muito. Foi uma abnegação”. A família nunca chegou a saber das verdadeiras dificuldades que o industrial passou. “Só uns anos mais tarde é que aqui na Sobreda encontrámos documentos em que ele conta a perseguição a que foi sujeito. Não nos contou para que não fossemos também perseguidos”.A pintora casou-se com o industrial cavalheiro. A campainha toca na casa grande amarela, frente à capela, na aldeia de Sobreda, Beira Alta. Foi ali que nasceu o industrial José Maria Ferreira Delgado, que em Vila Franca de Xira construiu um dos primeiros infantários do país para os filhos das suas mulheres trabalhadoras da fábrica da fiação. Foi ali que nasceu também Maria Helena Rufino, filha única. Aos 82 anos, abre a porta de casa e o coração para recordar a história do pai. É o marido, que abre a porta. Desculpa-se pela demora que a casa é grande.

Fernão Rufino é um cavalheiro ao mais puro estilo tradicional. Mais tarde puxará a cadeira da mesa e fechará a porta do carro a uma visita. Maria Helena e Fernão passam o Inverno na casa de Algés. No Verão migram para a casa de família na beira. Chama-os a cultura de avelã, que têm nos terrenos de família, já mecanizada, mas que ainda requer atenção.A área de cultivo da família deve-se, em boa parte, ao empreendedorismo do avô de Maria Helena, jurado em Coimbra, para onde chegava a ir a pé. Dois ou três dias de caminho para fazer 90 quilómetros. Certo dia meteu-se ao caminho para pedir ao juiz 500 escudos para aumentar as suas lavouras. O juiz emprestou. Morgado José Augusto Delgado era afinal pessoa de grande seriedade.

Maria Helena conheceu Fernão, industrial no Porto, na Cúria, local que as famílias procuravam por causa das termas. Estão casados há 60 anos. Ainda passeiam de mãos dadas, ceiam juntos e ouvem rádio antes de dormir, nunca antes da meia-noite. Têm quatro filhos. Todos nascidos no Porto. Seis netos.Maria Helena ajudou a criá-los sempre de olhos postos na pintura, uma paixão que descobriu aos 10 anos. Ainda frequentou o primeiro ano do curso superior de Belas Artes, em Lisboa mas o pai, severo na educação, não quis que a filha seguisse uma área artística. Mais tarde a menina, que estudou no colégio de freiras, tornou-se discípula da pintora Eduarda Lapa e fez carreira internacional como pintora.No hall de entrada há um retrato da pintora que um dia se cruzou com Maria Helena no comboio. Na mesa há bolos de avelã, bolo de chocolate caseiro, sumo de laranja e chá fresco. Loiças antigas e o rigor de uma sala de jantar senhorial.

 

Reportagem no Jornal O Mirante a 19 Agosto 2010
Ana Santiago

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